“O modo de
vida segundo Deus”: identidade, temporalidade e sacralização na História Eclesiástica de Eusébio de
Cesareia – século IV d.C.¹
Eduardo Silva²
Introdução
O presente trabalho se propõe a uma breve análise da
obra História Eclesiástica do Bispo
Eusébio de Cesareia, olhando principalmente para a formação de uma sacralização
do discurso histórico como novo gênero desenvolvido por Eusébio, a história
eclesiástica, para a temporalidade e articulação da narração histórica na obra
e nos dispositivos de formação de uma identidade cristã.
Eusébio Panfílio, ou Eusébio de Pânfilo, como ele
mesmo fará questão de se identificar, como uma póstuma homenagem a seu mentor,
o mártir São Pânfilo, morto em 309 na perseguição do Imperador Maximino Daia, nasceu
provavelmente em uma família de origem grega na palestina por volta de 260 d.
C. As informações sobre sua origem são, na verdade, meras especulações, pois
nada se tem de fato. Sabe-se, contudo, que fez seus estudos em Cesaréia,
importante porto marítimo da Ásia Menor, e o encontramos como sucessor do Bispo
dessa cidade, Agápio, por volta de 313.
Portador de grande erudição, Eusébio escreverá
diversos obras, mas de todas elas a História
Eclesiástica é sem dúvida a mais famosa e divulgada, contando com várias
edições durante o século IV, até a sua edição final, provavelmente entre os
anos 323 e 324, onde ela então recebe a formação que chegou até nós, com seus
10 livros. Já no século V ela seria traduzida para o latim, além de ter chegado
até o nosso tempo manuscritos em siríaco e armênio. A obra de Eusébio, por sua
originalidade e abertura de um novo campo na escrita cristã irá influenciar contemporâneos
e seguirá influenciando durante toda a Idade Média (LE GOFF, 2013: 53).
A História
Eclesiástica de Eusébio é sem dúvida o marco de fundação da história
eclesiástica como gênero de escrita histórica. Nela, principalmente preocupado
em guardar a sucessão apostólica, Eusébio irá empreender uma verdadeira
sacralização da escrita da história da Igreja, através de um discurso
exegético, apologético e dogmático. É a primeira obra a ser reconhecida
história da Igreja como tal³, o que valerá a Eusébio o
título de pai da história da Igreja, ou, nas palavras de François Hartog, será
“o primeiro historiador cristão no sentido pleno da palavra” (HARTOG, 2001:
257).
O Pai da História
Eclesiástica
Como ressaltamos acima, Eusébio será um pioneiro na
escrita de uma narrativa histórica da Igreja. Ele já havia esboçado uma
cronologia comparada entre a história pagã e a história cristã na Crônica, mas será em sua História Eclesiástica que ele irá expor
de maneira sistemática e argumentativa, com amplo uso de fontes e testemunhos,
o desenvolvimento da Igreja desde os Apóstolos até o triunfo desta sob a
proteção de Constantino. Esse pioneirismo em escrever uma história da Igreja
será reconhecido pelo próprio Eusébio já na introdução de sua obra: “Tengo para mí que es de todo punto necesario
el que me ponga a trabajar este tema, pues de ningún escritor eclesiástico sé,
hasta el presente, que se haya preocupado de este género literario”
(HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, I 1, 5). Ele também deixa claro que sua intenção é de
instruir aqueles que se interessarem pela história: “Espero, además, que se mostrará
utilísimo para cuantos se afanan por adquirir sólida instrucción histórica” (HE, I 1, 5). Embora seja o primeiro a escrever
uma história eclesiástica, Eusébio irá ser influenciado por escritores
anteriores, que apesar de não escreverem uma história propriamente dita da
Igreja, irão apresentar cronologias e exposições de fatos históricos, como
Júlio Africano e Hipólito (MOMIGLIANO, 1993: 99).
Nos primeiros parágrafos do livro I da História Eclesiástica Eusébio
apresentará um verdadeiro plano da obra, deixando bem claro suas motivações e
objetivos ao escrever uma história da Igreja:
Es mi propósito consignar las sucesiones de los santos apóstoles, y
los tiempos transcurridos desde nuestro Salvador hasta nosotros; el número y la
magnitud de los hechos registrados por la historia eclesiástica, y el número de
los que en ella sobresalieron en el gobierno y en la presidencia de las
iglesias más ilustres, así como el número de los que en cada generación, de
viva voz o por escrito, fueron embajadores de la Palabra de Dios; y también
quiénes, y cuántos, y cuándo, sorbidos por el error y llevando hasta el extremo
sus novelerías, se proclamaron públicamente a sí mismos introductores de una
mal llamada ciencia y esquilmaron sin piedad, como lobos crueles, al rebaño de
Cristo; y, además, incluso las desventuras que se abatieron sobre toda la
nación judía enseguida que dieron remate a su conspiración contra nuestro
Salvador (HE I 1, 1-2).
Podemos
perceber, nesse plano de obra apresentado por Eusébio, sua preocupação em
transmitir a sacralidade da história da Igreja através da sucessão de seus
bispos, legítimos sucessores dos apóstolos. Nesse destaque dado por Eusébio a
essa Diadokhé, expressão grega utilizada por ele, traduzida como
“sucessão”, seu interesse é “preservar e transmitir os sucessores dos apóstolos
e dos bispos, seus sucessores regulares, posto que a tradição apostólica é a
garantia de autenticidade da doutrina. Encontra-se de chofre a instituição, a
autoridade e a memória” (HARTOG, 2001: 266-267).
Ainda é interessante notar que ele pretende expor a
memória daqueles que ensinaram doutrinas contrárias ao da ortodoxia vigente na
Igreja, para mostrar o triunfo dessa ortodoxia contra essas ditas heresias.
Aqui encontramos uma afirmação de identidade através da oposição entre os
escritores considerados ortodoxos em suas doutrinas por Eusébio e os escritores
heréticos
Ainda dentro dessa formação de uma identidade cristã,
necessária no momento em que escreve Eusébio, onde a Igreja conquistará sua
liberdade com o Édito de Tolerância em 313, apresentará os fatos da história
dos judeus, mostrando, com as catástrofes que se abateram sobre estes, a
supremacia e predileção diante de Deus da Igreja Cristã, num claro discurso de
aversão ao judaísmo.
A História de Eusébio
No prólogo do
livro V da História Eclesiástica Eusébio deixará claro que a história que faz
possui uma grande diferença com a história clássica produzida pelos pagãos. Segundo ele, “Otros, al hacer
las narraciones históricas, acaso no hayan transmitido por escrito más que
victorias de guerras, trofeos contra enemigos, hazañas de generales y valentías
de soldados manchados de sangre y de muertes innumerables por causa de los
hijos, de la patria y demás bienes” (HE V prólogo, 3). Como podemos denotar, o que
Eusébio não pretende é ser um “Tucídides Cristão”. Esse trecho também nos revela
um pouco da visão de Eusébio sobre o gênero histórico da antiguidade. A originalidade dele se mostra, então, porque
Nuestra
obra, en cambio, que describe el género de vida según Dios, grabará en estelas
eternas las más pacíficas luchas por la misma paz del alma y el nombre de los
que en ellas se comportaron
varonilmente, más por la verdad que por la tierra patria, y más por la religión
que por seres queridos, y se proclamará públicamente, para eterna memoria, la
resistencia de los atletas de la fe, su bravura, curtida en mil sufrimientos,
los trofeos logrados contra los demonios, las victorias sobre los adversarios
invisibles y, después de todo, sus coronas (HE V
prólogo, 4).
Eusébio deixa claro, portanto, que a função da
história eclesiástica é transmitir os fatos gloriosos da Igreja, em contraponto
às guerras e fatos políticos da história clássica greco-romana. Como nos dirá
François Hartog, a história desenvolvida por ele, “Diferentemente da outra
história, a ordinária, a das nações antigas, não se trata senão de combates a
favor ou contra a nova fé: as heresias, as perseguições, os mártires, os ditos
e os feitos dos principais bispos e a vida das principais igrejas” (HARTOG,
2001: 267).
A história eclesiástica pensada por Eusébio está
repleta, nas palavras de Christian Meier de uma “História providencial que se
desenrola desde a criação do mundo, passando pela História judaica, indo em
direção ao nascimento de Cristo, para desembocar na História do Império Romano”
(KOSELLECK, 2013: 60). De fato, ele conscientemente irá construir a
temporalidade de seu texto histórico baseado nas concepções cronológicas
judaico-romanas, fazendo o que Meier chamará de uma sincronização entre
História bíblica e História pagã. Isso se faz possível porque “o cristianismo
vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus
encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada,
a História torna-se suscetível de ser santificada” (ELIADE, 1992: 57).
Conclusão
Ao entender a História
Eclesiástica de Eusébio como um marco fundador da escrita da história cristã,
esse trabalho se insere numa pesquisa onde procuraremos identificar no discurso
dele elementos de formação de um gênero histórico-eclesiástico e sua influência
em textos posteriores; procuraremos também identificar as fontes utilizadas por
ele na História Eclesiástica e o modo como irá articulá-las na construção da
obra, e analisar a construção do texto histórico por Eusébio, integrando-o ao
contexto histórico da Antiguidade Tardia, através do diálogo com autores que
irão da história da historiografia e filosofia da história, além de trabalhos
sobre a patrística, particularmente a patrística grega.
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Notas:
Referências Bibliográficas:
Fonte:
EUSEBIO PANFILIO, Obispo de Cesarea. Historia
Eclesiástica.
Traducción, introducción y notas de Argimiro Velasco-Delgado. Madrid: BAC,
2008.
Bibliografia: