Grandes Reformadores: Análise psicológica das personalidades de Justiniano, Júlio César e Shi Huangdi

Tradução e adaptação: Mare Nostrum - Barbara C. L. da Silva
Fonte: Daniela Zaharia, Elena Stănculescu, Florica Mihuț-Bohîlțea, Ecaterina Gabriela Lung
Artigo: Great Reformers: Psychological Analysis of Their Personality Justinian, Julius Caesar and Shi Huangdi

1. Introdução

Os recursos históricos referentes aos imperadores Júlio César do Império Romano, Justiniano do Império Bizantino e Qin Shi Huang Di, fundador do Império Chinês, são abundantes e muitas vezes extremamente detalhados, mesmo que os pontos de vista a respeito deles sejam por vezes ambivalentes ou bastante divergentes. Frequentemente opostos ao senso comum e tradições, essas personalidades fortes, que introduziram mudanças em suas respectivas sociedades de forma definida e sistemática, têm intrigado seus contemporâneos e ganharam uma forte, mas controversa reputação na posteridade. Além dos documentos históricos, nossa base teórica abrange as principais teorias de traços de personalidade, como o modelo de The Sixteen Personality Factor Model - Raymond B. Cattell (1978) e The Big Factor Model - Lewis Goldberg (1990). R. B. Cattel enfatizou dezesseis componentes fundamentais diferentes da personalidade (abstração, apreensão, domínio, estabilidade emocional, vivacidade, abertura à mudança, perfeccionismo, privacidade, raciocínio, consciência de regra, autoconfiança, sensibilidade, audácia social, tensão, vigilância e calor). Ele ressaltou que esses traços representam a fonte de toda a personalidade humana. Os cinco grandes fatores considerados por L. Goldberg (1990) como categorias amplas de personalidade: extraversão, agrado, consciência, neuroticismo e abertura. Usamos essas teorias de personalidade porque descrevem as extensas áreas de personalidade. A evidência empírica sugere que esse agrupamento de características parece ocorrer em muitas pessoas. Levando em consideração os recursos historiográficos, analisamos os traços de personalidade dos três imperadores através de várias dimensões incluídas nos modelos acima mencionados.

2. O Imperador Justiniano I (482-565 dC) – retrato histórico e psicológico

A imagem de Justiniano, como se vê nas obras de historiadores contemporâneos e posteriores, não faltam controvérsias. Visto por Procopius como o maior imperador ou o diabo encarnado, até hoje o seu legado ainda é questionado, sendo desde o mais importante governante bizantino até o destruidor do último legado romano, em parte devido ao seu reinado extraordinariamente longo e cheio de acontecimentos. Charles Diehl propõe uma interpretação da personalidade de Justiniano através de duas ideias dominantes: a imperial e a cristã (Diehl, vol. II, p.372).

A primeira levou-o a tentar reestruturar o Império Romano, através de campanhas de reconquista no Ocidente (África, Itália, Espanha), bem como um prolongado conflito com a Pérsia no Oriente, com o objetivo último de renovatio imperii. A propaganda oficial imperial disse, por meio das palavras de seu historiador contemporâneo Procopius: "Então apareceu o imperador Justiniano, confiado por Deus com esta comissão, para vigiar todo o Império Romano e, na medida do possível, refazê-lo" (Procopius , 2.6.6.). Isto foi acompanhado por reformas administrativas e legislativas, que acabaram por transformar o Império Romano Oriental em Bizantino. Em suas guerras e em seus esforços administrativos, Justiniano, assim como em sua vida pessoal, parecia usar seu poder divinamente inspirado, resultando em uma "autocracia divinamente apoiada" (Massa, p.4). Essa dimensão cristã foi a segunda ideia dominante de sua personalidade. Em busca disso, ele perseguiu os judeus, os heterodoxos, os pagãos e os homossexuais e promulgou leis baseadas em uma base moral firme. A Igreja e o clero finalmente se tornaram instrumentos do poder imperial.

A nível pessoal, ele também parecia ser um homem verdadeiramente devoto, começando com seu interesse inicial na teologia e terminando com ele escrevendo um tratado teológico e gastando uma grande parte de seus últimos anos envolvidos em discussões com teólogos e monges. Não mais capaz de igualar a divindade em um império cristão, ele assumiu o título isapostolos (igual aos Apóstolos), posicionando-se assim acima dos mortais comuns, mas também acima da Igreja. Com uma crença absoluta em seu apoio divino, ele se inspirou tanto em imperadores romanos clássicos, mas também em autocratas orientais. Assim, poderíamos perguntar se Justiniano realmente não tentou se recompensar, pelo menos simbolicamente, por suas origens humildes, e se isso explica sua atitude às vezes hostil em relação à aristocracia.

A busca do poder pessoal acima de tudo, somada a um orgulho imenso, levou-o um desejo de controlar tudo, uma falta de confiança e até mesmo falta de vontade para delegar responsabilidades. Procopius disse que não ele permitia que ninguém, em todo o Império, tomasse uma decisão por si mesmo (Procopius apud., Diehl, p.368). Justiniano envolveu-se controversamente nas decisões do campo de batalha e tem fama de ter desenhado os planos para o próprio Santa Sofia, com base em uma visita em um sonho angélico (Harris, p.35). Esta catedral foi apenas uma das muitas obras importantes em que ele gastou grande riqueza, alguns dizem que em detrimento de outros aspectos do governo, todos com o objetivo de sua glória pessoal. "Salomão, eu te ultrapassei!", Ele diz ter exclamado na inauguração de Santa Sofia (Scriptores, 2007, p.105).

Quando confrontado com complôs ou rebeliões, como o motim Nika, mostrou crueldade em reprimi-los e, mais tarde na vida, até mesmo um grau de obsessão com conspirações, levando, por exemplo, ao castigo de seu fiel general Belisarius. A posterior flexibilização dessa punição serve apenas para ilustrar a pressa ocasional das ações do imperador. Apesar de controverso, o imaginário de Justiniano continua a persistir, tanto na historiografia quanto na cultura popular, lembrado como aquele que construiu Santa Sofia e cujo dia ainda é celebrado na Igreja Ortodoxa no dia 14 de novembro. Os traços mais importantes de Justiniano são: vigor psicológico, grande potencial para atingir seus objetivos, moralidade e altruísmo. Ele era um importante símbolo da cultura bizantina. Justiniano usou o trono principalmente para o benefício de seu povo e a glória de Deus. Os historiadores enfatizaram que ele era piedoso, expressando suas crenças religiosas através de suas ações. A partir da perspectiva dos Cinco Grandes Fatores, podemos concluir que Justiniano tinha alto nível de consciência, devido à sua auto-eficácia (dimensão psicológica do eu que inclui um conjunto de crenças na própria capacidade de completar tarefas e atingir metas) E auto-disciplina ou perseverança. A tendência ao perfeccionismo se refletiu no grande propósito da renovatio imperii.

Ele era conhecido por sua resistência e trabalho (alto nível de ativismo). Sua inteligência prática é refletida em obras públicas famosas, como a reconstrução de cidades inteiras destruídas por terremotos, bem como fortificações e defesas nas extensas fronteiras. Também incluiu edifícios importantes, como a magnífica Igreja Hagia Sofia. Outra característica importante é a auto-suficiência, já que sua falta de vontade para delegar as responsabilidades é bem conhecida. Ele enfatiza pelo desejo de dominar tudo e pelo fato de que ele tomou todas as decisões do domínio de Justiniano nas relações com os outros. Apesar de sua proeminente consciência moral, reprimiu com crueldade os distúrbios causado pelo motim Nika (sendo influenciado pela sugestão de sua esposa). No entanto, Justiniano estava genuinamente preocupado em promover o bem-estar do povo (característica altruísta).

Figura 1  – Traços de personalidade de Justiniano 

3. Júlio César (12 ou 14 de julho, 100-15 de março, 44 ​​a. C.) – retrato histórico e psicológico

"É motivo de tristeza que, enquanto Alexandre, na minha idade, já era rei de tantos povos, e eu ainda não consegui nenhum sucesso brilhante?" Essas parecem ter sido as palavras de Júlio César quando ele chegou à Espanha (69 a.C), aos trinta e três anos para servir seu cargo de quaestor¹, enquanto ele estava olhando para a estátua de Alexandre (Plut., Jul. Caes., 11, 3, também em Suet., Cés., 7; Cass. Dio, 37, 52, 2 ).

Nascido em uma família patrícia, um pouco velho, mas não muito famoso, Júlio César recebeu uma boa educação. Apesar de seu talento manifestado tanto na literatura como na retórica, ele escolheu sua própria prioridade de decidir estar no topo dos assuntos militares, o que poderia lhe proporcionar um caminho seguro para o mais alto status político. Aparentemente ele "foi dotado pela natureza para fazer o melhor uso de todas as artes da guerra, e particularmente de seu momento crucial" (Plut., Caos., 26, 2), ele sabia falar com muita sabedoria, aparecendo como um "mestre da dissimulação" (Apiano, Guerras Civis, II, 10). Seu caráter é revelado desde o início: "Poderoso em discurso e ação, ousando em todos os sentidos, ambicioso de tudo, e profusa além de seus meios na busca de honras. Enquanto ainda ædile e prætor, ele tinha incorrido grandes dívidas e tinha feito-se maravilhosamente agradável para a multidão, que sempre cantou os louvores daqueles que são pródigos em despesas "(Apiano, Guerras Civis, II, 1). César parece estar convencido de que investir sua riqueza no povo é a maneira de "enriquecimento" em uma república muito menos funcional, onde a velocidade das mudanças havia aumentado. Tendo popularitas tornou-se muito importante e atingível através do amor do povo, através do reconhecimento dos cidadãos. Por isso César criou o seu próprio povo. Amigos, parentes e principalmente soldados logo se acostumaram com "seu amor pelo perigo", mas acima de tudo, permaneceram permanentemente em uma peculiar propriedade de reverência por causa da força de César para suportar restrições de uma vida militar, a má alimentação e falta de conforto. Ele costumava dormir sob o céu aberto, apesar do fato de que "ele era de um hábitos reservados, tinha uma pele macia e branca, sofria de cinomose na cabeça e estava sujeito a ataques epilépticos" (Plut., Jul. Caes. , 17, 2). César não queria ser visto como um elitista, viveu por um tempo no bairro de Suburra (distrito desprestigiado de Roma), se recusou a lutar a cavalo na Gália, num momento em que as necessidades das batalhas exigiam, permanecendo perto de seus soldados no campo e proclamando que tomará o cavalo somente para a cerimonia do triunfo (Plut., Jul. Caes., 27, 5). Ele frequentemente tentava se submeter a treinamento militar e ditar cartas ao mesmo tempo (Plut., Jul. Caes., 17, 3-4). Ele nunca parecia ter medo de quebrar as regras, e mesmo em seu momento crucial de decisão ele não perdeu a paciência, apesar das mensagens enviadas pelos Deuses em seus sonhos (Plut., Jul. Caes., 32, 6). Procurando a explicação para o sucesso de César, Plutarco considerou que não estamos lidando com "nada mais do que a emulação de si mesmo, como se ele tivesse sido outro homem, e uma espécie de rivalidade entre o que ele tinha feito e o que ele tinha a intenção de fazer." ( Jul. Caes., 58, 2)

Durante toda a sua carreira, Júlio César tentou combinar a tradição com a inovação para desempenhar um papel fundamental no equilíbrio de poderes na moribunda República Romana. O povo romano tornou-se mais sensível aos assuntos políticos e religiosos nos últimos dois séculos da República. O antigo valor da liberdade (libertas) e até mesmo a cidadania (ciuitas romana) estavam em perigo de desaparecerem durante as guerras civis. Júlio César entendeu isso muito bem, pois era um bom observador. Ele estava se comportando como um dos povos, mas ao mesmo tempo estava construindo uma imagem carismática de um líder providencial e exemplum para os outros. Ele foi visto como um cidadão muito piedoso com pleno respeito por seus antepassados, mas enquanto ele estava honrando-os em público (69 a.C), ele introduziu uma nova dimensão de sua reputação familiar e genealogia: a dupla conexão com os primórdios de Roma, a do nascimento do povo romano e o período dos reis (Suet., Caes., 6, Plut. Jul. Caes., 9-10, Apiano, Guerras Civis, II, 102), ele ousou pela primeira vez usar a história e a religião em seu interesse. Depois, respeitando o esforço militar do populus romanus, ele introduziria novas festividades no calendário religioso da cidade – ludi victoriae – mas estas serão decididas por lei em seu nome (45 a.C). Não houveram festas religiosas na honra de um mortal antes de Júlio César, apenas para os Deuses (deorum causa), disse o antiquário Varro em seu livro sobre a língua latina (VI, 12). Júlio César mudou a tradição para ele (Fraschetti, 1994, 21) e seus soldados. Depois de sua apoteose (44 a.C), uma nova festa que celebrava seu status divino foi adicionada e essas inovações se tornariam uma regra para as cerimônias religiosas imperiais. Mais do que isso, César reformou todo o calendário romano, em 45 a.C., introduzindo uma nova estrutura para os meses e renomeado o quinto mês do ano (quando ele nasceu) em seu nome (por isso  o mês Quintilis, tornou-se Iuliis – Julho). Ele modificou toda a estrutura do sacerdócio colegial em Roma, em cima da qual Júlio César era o Grande Padre (Pontifex Maximus), com o controle total sobre a eleição dos sacerdotes. Esta seria outra prerrogativa constante dos futuros imperadores.

Em relação a sua 'ditadura' (de 48 a.C), ele também envolveu as pessoas próximas do Senado, modificando novamente a tradição republicana (Polib., III, 81) em nome do respeito pelos cidadãos. Mantendo este espírito, a sucessão dinástica no período imperial seria criada em torno do acordo de três instituições: o Senado, o povo e o exército (ILS 244, também Tácito, Hist., I, 12 sqs). Durante sua censura (46 a.C), Júlio César organizou um censo de toda a população, atividade para a qual ele enviou autoridades aos territórios (Suet, Caes., 41, Plut., Jul. Caes., 61, II, 102.) e mudou novamente a antiga regra que exigia a presença dos cidadãos em cada registro (registrado a cada cinco anos) no Campo de Marte (Campus Martius), em Roma. A velha imagem de Roma, vista como um corpo de seus cidadãos reunidos na cidade, é transformada. Roma é vista por toda parte além das paredes da cidade através de seu povo. Trata-se de uma nova percepção das fronteiras internas, de uma nova compreensão da geografia interna, que se desenvolveria na época imperial. Júlio César dá conta muito bem das consequências da reforma militar de Caius Marius. A ligação entre um soldado e seu general tornou-se mais forte e as relações de clientelismo são seguidas pelo apoio material porque o general é quem elabora a lista das atribuições futuras para os veteranos (Goldsworthy, 2008, 471-81). César supervisiona a distribuição de alimentos dentro de Roma, e ele tem o poder de reorganizar a hierarquia social. O destino das pessoas está nas mãos de Júlio César, e a salvação do Estado depende dele.

Vida, espaço e tempo são os campos de sua constante atividade em superar Alexandre, o Grande. Ele confia em si mesmo, mas mais do que isso, ele acha que convenceu os outros a confiar nele. Ele acredita tanto nisso, que se recusa a ser protegido por uma guarda pessoal. Ele adorava viver em perigo espantando seus partidários e enfurecendo seus inimigos. No dia 15 de março de 44 a.C, ele foi assassinado e tornou-se a primeira vítima e tirano morto, então apenas um herói com o status divino. Mesmo seu funeral gera muitos sentimentos confusos: ele é incinerado no meio do Fórum Romano, e a cidade se transforma em caos. No decorrer do tempo e com a ajuda de seu herdeiro, o futuro imperador Augusto, as pessoas começaram a esquecer o aspecto violento do governo de César e a lembrar-se apenas do perfil carismático de um líder militar e político, e era provavelmente a forma exata na qual César queria ser visto.

Um dos traços principais da personalidade de César inclui a necessidade de reconhecimento e sucesso. Quando chegou a uma estátua de Alexandre, o Grande, queixou-se que Alexandre tinha conseguido muito mais do que ele. Os historiadores enfatizaram que César tinha uma grande capacidade de influenciar outros senadores e opinião pública, sendo um bom orador e inteligente em fazer alianças. Do ponto de vista psicológico, essas características refletem um alto nível de inteligência social - uma qualidade que todo político quer ter. Às vezes ele usava sua inteligência social manipulando os outros. César tinha uma imagem do glorioso general, sendo ao mesmo tempo muito generoso e altruísta. Outro dos traços de personalidade de César foi a extraversão. Sabe-se que ele era o ponto médio de todos os outros. Ele era uma pessoa encantadora, gostava de estar perto de muitos amigos. É importante mencionar que o imperador romano tinha uma tendência à vaidade. Sendo seduzido pela crescente idealização do povo da sua imagem, ele não levou em consideração as possíveis ameaças contra sua vida, pensando que era invencível. O fato de ele gostar muito de estar perto de pessoas inteligentes reflete não só a tendência gregária, mas também a abertura. Outras características da personalidade de César (abrangendo o fator de abertura do Big Five Model) é a aventura, a imaginação e os interesses artísticos (levando em consideração que ele escreveu poesias). As realizações militares e políticas consistentes sugerem que a personalidade de César é descrita por alguns sub-traços pertencentes ao fator consciência - auto-eficácia, ambição, conquista e auto-disciplina ou perseverança.

Figura 2 – Traços de personalidade de Júlio César
4. Shi Huangdi (259-210 a.C.) - retrato histórico e psicológico

O primeiro imperador da China, Shi Huangdi da dinastia Qin, famoso hoje em dia principalmente por seu gigantesco mausoléu contendo o exército de terracota, é uma das figuras mais controversas da historiografia chinesa tradicional. Em 221 a.C, como rei do Estado Qin, ele consegue derrotar os seis soberanos dos estados rivais da planície chinesa e cumpre um ideal de dois séculos situado nos objetivos políticos do mundo chinês: construir uma nova unidade política. A visão política e ideologia que Shi Huangdi baseia seu poder, no entanto, é diferente do que o simples desideratum da unidade do Estado significava. Inspirado pela doutrina legalista (Fajia), que aprende de seu magistrado Han Feizi e aplica através de seu ministro Li Si, dois dos mais importantes legalistas de sua época, o imperador unifica as medidas e escreve, esclarece os status sociais, constrói estradas e instalações hidráulicas (incluindo seções do Grande Canal), inicia a construção da Grande Muralha, reforma instituições e estabelece as bases para a administração imperial (Lewis, 2007). Estas reformas visionárias, que tornam possível a unidade e a continuidade do Estado, não lhe conferem uma merecida reputação como fundador do Império, mas sim um tirano imoral, destruidor de tradições e obcecado pelo poder absoluto. A tradição historiográfica chinesa, em Records of the Grand Historian (Sima Qian, trad. Dawson, 2007) é a fonte mais próxima da era de Shi Huangdi, que lança uma verdadeira damnatio memoriae sobre o rei, uma condenação que praticamente permanece incontestada em um meio dominado por seguidores do Confucionismo. Este último será considerado guardião das tradições - verdade histórica discutível, mas percepção cultural perene na mentalidade tradicional chinesa - e avançar as reformas do Primeiro Imperador como agressões que escondem o desejo de remover valores ancestrais, cujos defensores são os estudiosos afiliados à escola de Confúcio. Assim condenado a uma reputação eterna como um tirano; crimes contra as tradições mais preciosas são atribuídos a Shi Huangdi: assassino de seus próprios parentes, traidor de seus aliados, ele se envolve com arrivistes, despreza o sábio e é obcecado com o poder na medida em que assegura sua imortalidade através da magia. A lista de suas falhas absurdas e comportamento é dada a nós por Sima Qian, através da voz de dois sábios taoístas (que estão prestes a tirar vantagem e enganar o Imperador): "O Primeiro Imperador é o tipo de pessoa cuja natureza celestial é teimosa e auto-satisfeita. (...) O Supremo gosta de usar punições e execuções como um sinal de sua autoridade, e como todos sob o Céu dependem de seu salário com medo do castigo, ninguém ousa cumprir seus deveres leais. Desde que o Supremo não ouve falar de suas falhas, ele se torna cada vez mais arrogante a cada dia, e seus subordinados, encolhidos em terror, praticam a duplicidade para ganhar sua tolerância." (Sima Qian, 2007, p.76-77)

O "caso" de Shi Huangdi está inserido na tradição historiográfica usando um conjunto de detalhes sobre momentos-chave e circunstâncias de sua vida que incluem: um escândalo sexual no contexto do qual sua posição como filho legítimo é duvidada, comportamento hostil em relação a qual ele tem a obrigação de seu trono e quem é a principal figura paterna em sua vida (até que ele cause sua morte), perseguições contra sua mãe (envolvidas em um segundo escândalo sexual), duas tentativas de assassinato que levam a comportamentos paranoicos e violentos, incluindo a obsessão com adquirir a imortalidade.

A relação com seus pais, incluindo a filiação incerta, é central para a tradição historiográfica. Sima Qian nos conta a sórdida história de como o pai biológio do Primeiro Imperador, refém de um tribunal estrangeiro e deixado pela própria família para viver na pobreza, é salvo, patrocinado e promovido por um rico e ambicioso comerciante, Lu Buwei. Este comerciante também lhe dá uma esposa, sem lhe dizer que a mulher era a concubina de Lu e já grávida (com o futuro Shi Huangdi) quando casada com o Príncipe de Qin. Este evento faz uma figura ilegítima do Primeiro Imperador, tanto em um contexto político, quanto familiar. Não está claro se o futuro imperador é desde o início informado sobre esta história (ou a fofoca, se não devemos acreditar na teoria de Sima), mas sabemos que Lu Buwei serviu como primeiro-ministro no início de seu reinado e que o jovem rei dirigia-lhe com a expressão zhong fu. A mesma significa "segundo pai", com o significado biológico (irmão mais novo do pai) e simbólico (indicando um relacionamento próximo, mas hierárquico). De acordo com Sima Qian, irritado com os rumores sobre a alegada relação filial, Shi Huangdi dispensa Lu Buwei de seu escritório, e exilando ele, no final envia-lhe uma mensagem categórica: "Que intimidade você mostrou para Qin para ter direito a ser chamado de tio? Você deve se retirar junto com sua família e seguidores e ir viver em Shu!"(Sima Qian, 2007, p.8). Após este tratamento, Lu Buwei cometeu suicídio.

Igualmente problemático e envolto em uma atmosfera de promiscuidade é a história do segundo escândalo sexual envolvendo a mãe do Primeiro Imperador. Depois de se tornar viúva, ela esconde um amante no palácio, secretamente dá à luz a dois filhos e tem planos para derrubar seu primeiro filho para substituí-lo com um dos dois filhos nascidos deste relacionamento constrangedor. Quando tudo se torna público, Shi Huangdi mata os dois filhos, o amante da Rainha Mãe e a manda para o exílio até sua morte. Postumamente, entretanto, assegura-se de que seja estabelecida a sua mãe um título real, que reforce seu próprio status como um descendente da dinastia de Qin.

Além da trama relatada, Sima Qian relata mais duas tentativas de assassinar o futuro imperador, ambos infrutíferos, e ainda traumáticas. O historiador comenta depois de relatar o segundo episódio: "... para o resto de sua vida ele nunca mais permitiu que ninguém dos estados feudais se aproximasse dele" (Sima Qian, 2007, p.22).

A preocupação com sua própria segurança, transformada após concluir a unificação política em uma obsessão por obter a imortalidade, definiu os últimos anos do reinado de Shi Huangdi, pelo menos em registros historiograficos tradicionais. O primeiro ato que ele fez depois da unificação, escolhendo um novo nome oficial, nos fornece a expressão ideológica dessa tentação (e a única sobre a qual podemos estar certos): o nome de Shi Huangdi significa mais precisamente o "Primeiro Imperador de Agosto", O primeiro de uma série de 10.000 soberanos (o equivalente a Infinito), que seriam numerados com nomes oficiais impessoais ("Segunda Geração","Terceira Geração", etc. - Sima Qian, 2007, p.62-63). As inspeções que faz nas províncias do império são marcadas por marcos epigráficos, que pretendem imprimir a memória de seus atos por toda a eternidade. Paralelamente, ele destrói as crônicas de dinastias anteriores, para apagar os fatos e alegar que o tempo do mundo começa com ele. O historiador não restringe, no entanto, a mencionar essas formas de seguro de imortalidade simbólica, por meio da ideologia e da memória, mas afirma que Shi Huangdi também se preocupa com doutrinas esotéricas e emprega mágicos para produzir o elixir da imortalidade. Aguardando este elixir, constrói-se um labirinto-palácio, dentro do qual se esconde todas as noites em outra sala de modo que nenhum assassino seria capaz de antecipar seus movimentos. Finalmente, ele embarca em uma jornada para encontrar a essência da imortalidade, mas apenas para morrer no caminho.

Além dos méritos estratégicos de Shi Huangdi, que cumpriram o antigo sonho de unificar os estados chineses, podemos afirmar que ele tinha um sentido tenaz de direitos pessoais, sendo auto-determinado para realizar seus grandes propósitos na vida (outro de seus méritos é o começo da construção da Grande Muralha). As principais contribuições políticas e históricas refletem traços psicológicos como ativismo, autodeterminação e alto nível de liberalismo (levando em consideração que ele contestou os valores da cultura confucionista). As performances acima mencionadas enfatizam que Shi Huangdi foi um pensador estratégico, porque ele realizou grandes coisas, sendo a mais importante a unidade entre o estado de Qin e outros seis estados rivais. Levando em consideração suas decisões e ações, podemos sublinhar que ele tinha uma personalidade autoritária, atuando como o Supremo. Ele era vingativo, implacável - sendo adepto das punições e execuções. Sua necessidade obsessiva de poder e desejo de ter imortalidade refletem um mecanismo defensivo para suas emoções irritativas geradas pela autoconsciência de suas origens (ele era uma criança ilegítima). Para compensar esse aspecto, ele tentou apagar a memória social dos antigos governantes e escrever uma nova história, cujo primeiro herói seria ele mesmo. Outra característica psicológica relacionada à necessidade de poder são: onipotência, sentimento inflacionado de auto-estima e superestimação. Suponhamos que este último pudesse ter o papel de esconder um eu frágil ou vulnerável, determinado pelo fato de que ele não era filho do rei de Qin. Ele duvidou da confiabilidade dos outros e decidiu eliminar seu pai e assassinar seus irmãos. Sabe-se também que ele escolheu exilar sua mãe. Nas relações sociais, ele era muito duro, usando a pena capital com aquelas pessoas que representavam uma ameaça para sua posição. Shi Huangdi tinha uma grande desconfiança dos outros. Os psicólogos concordam que as pessoas que têm uma grande falta de confiança, experimentam outras dificuldades, como a ansiedade (neuroticismo). Shi Huangdi desenvolveu um grande medo da morte. Por esta razão, ele criou um enorme labirinto em seu castelo, mudando o quarto todas as noites, a fim de se proteger de possíveis assassinos. Ele teve uma estranha tentação de encontrar o elixir da imortalidade.

Figura 3 – Os traços de personalidade de Shi Huang Di


5. Observações finais

Levando em consideração as principais características enfatizadas em nosso trabalho, podemos concluir que existem alguns traços psicológicos comuns entre esses grandes governantes: inteligência estratégica e social, consciência, autoconfiança. Eles realizaram seus importantes objetivos, sendo tais traços, psicológicos. A inteligência social é essencial para descobrir e usar as pistas contextuais e para efetivamente negociar as relações sociais complexas. Foi definida como uma interação dinâmica entre a consciência social (cognição social e empatia) e facilidade social (auto-apresentação, força persuasiva e sincronia). A inteligência estratégica serviu como um instrumento cognitivo para projetar a sua política e planos militares. Especialistas concordam que inteligência estratégica representa um conjunto de habilidades para perceber, sintetizar e integrar elementos para cumprir os propósitos, entendendo e levando em consideração as tendências que poderiam ser oportunidades ou ameaças. Outro traço psicológico comum que descreve a personalidade de César, Justiniano e Shi Huang Di é a autoconfiança que supõe realizar as atividades, cumprindo os próprios objetivos de maneira independente e engenhosa. Esse conceito está fortemente relacionado à robustez psicológica, ao eu positivo e à alta auto-eficácia. Shi Huang Di e Justiniano eram dominantes, e no caso do imperador chinês, o traço psicológico estava fortemente relacionado com a necessidade obsessiva de poder. Justiniano tinha um estilo autoritário, mas não era tirânico. Outro traço psicológico do imperador chinês era o neuroticismo. É aceito na literatura que as pessoas que têm altos níveis de neuroticismo são mais propensas a experimentar ansiedade, raiva e humor deprimido, sendo preocupante e mais vulnerável aos "estressores". Shi Huang Di com medo de diversos possíveis ataques daqueles que queriam matá-lo, desenvolveu uma tendência de isolar-se da comitiva. César era o oposto do imperador chinês, sendo extrovertido, gostando muito de estar no meio de seus amigos.

Para cada um dos três imperadores, sua característica dominante também deve ser ligada à sua educação e contexto cultural: a moralidade de Justiniano é um traço cristão, Shi Huang Di foi educado por seu tutor legalista em um espírito de duplicidade e aspiração de poder absoluto, César era um romano e sua visão social era mais do que qualquer coisa dominada pelo ideal republicano da democracia romana, e a crença no valor da cidadania romana acima de todas as outras nações. No entanto, seus fortes traços individuais de personalidade lhes serviam bem em projetos reformistas que visavam mudar o status quo social e político de três sociedades tradicionais.

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¹ Um questor (UK / kwiːstər /, US / kwɛstər /, do latim: "investigador") era um oficial público da Roma antiga. A posição serviu funções diferentes dependendo do período. No Reino Romano, quaestores parricidii (questores com poderes judiciais) foram nomeados pelo rei para investigar e lidar com assassinatos. Na República Romana, os questores foram eleitos funcionários que supervisionavam o tesouro estatal e realizavam auditorias. Era a posição mais baixa da classificação no cursus honorum (curso de escritórios). No Império Romano, a posição, que foi inicialmente substituída pelo prefeito, reapareceu durante o último império como questor intra palatium, uma posição designada pelo imperador para liderar o conselho imperial e responder aos peticionários. [N.T.]

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As traduções de artigos acadêmicos, dentre outros materiais, pelo Mare Nostrum tem a finalidade de democratizar o conhecimento e aumentar o número de produções de fácil acesso para brasileiros e brasileiras.

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