“O Modo de Vida Segundo Deus”

A Conversão de Constantino ao Cristianismo, eternizada por Eusébio em De Vita Constantini na famosa visão da cruz com a inscrição In hoc signo vinces - sobre este signo vencerás, inicia o período de paz da Igreja que Eusébio comparará na História Eclesiástica ao advento do Cristo com Salvador.
O modo de vida segundo Deus”: identidade, temporalidade e sacralização na História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia  – século IV d.C.¹
Eduardo Silva²
Aluno de graduação em História/UFRRJ
lattes.cnpq.br/2911677383103317


Introdução
O presente trabalho se propõe a uma breve análise da obra História Eclesiástica do Bispo Eusébio de Cesareia, olhando principalmente para a formação de uma sacralização do discurso histórico como novo gênero desenvolvido por Eusébio, a história eclesiástica, para a temporalidade e articulação da narração histórica na obra e nos dispositivos de formação de uma identidade cristã. 
Eusébio Panfílio, ou Eusébio de Pânfilo, como ele mesmo fará questão de se identificar, como uma póstuma homenagem a seu mentor, o mártir São Pânfilo, morto em 309 na perseguição do Imperador Maximino Daia, nasceu provavelmente em uma família de origem grega na palestina por volta de 260 d. C. As informações sobre sua origem são, na verdade, meras especulações, pois nada se tem de fato. Sabe-se, contudo, que fez seus estudos em Cesaréia, importante porto marítimo da Ásia Menor, e o encontramos como sucessor do Bispo dessa cidade, Agápio, por volta de 313.
Portador de grande erudição, Eusébio escreverá diversos obras, mas de todas elas a História Eclesiástica é sem dúvida a mais famosa e divulgada, contando com várias edições durante o século IV, até a sua edição final, provavelmente entre os anos 323 e 324, onde ela então recebe a formação que chegou até nós, com seus 10 livros. Já no século V ela seria traduzida para o latim, além de ter chegado até o nosso tempo manuscritos em siríaco e armênio. A obra de Eusébio, por sua originalidade e abertura de um novo campo na escrita cristã irá influenciar contemporâneos e seguirá influenciando durante toda a Idade Média (LE GOFF, 2013: 53).
A História Eclesiástica de Eusébio é sem dúvida o marco de fundação da história eclesiástica como gênero de escrita histórica. Nela, principalmente preocupado em guardar a sucessão apostólica, Eusébio irá empreender uma verdadeira sacralização da escrita da história da Igreja, através de um discurso exegético, apologético e dogmático. É a primeira obra a ser reconhecida história da Igreja como tal³, o que valerá a Eusébio o título de pai da história da Igreja, ou, nas palavras de François Hartog, será “o primeiro historiador cristão no sentido pleno da palavra” (HARTOG, 2001: 257).

O Pai da História Eclesiástica
Como ressaltamos acima, Eusébio será um pioneiro na escrita de uma narrativa histórica da Igreja. Ele já havia esboçado uma cronologia comparada entre a história pagã e a história cristã na Crônica, mas será em sua História Eclesiástica que ele irá expor de maneira sistemática e argumentativa, com amplo uso de fontes e testemunhos, o desenvolvimento da Igreja desde os Apóstolos até o triunfo desta sob a proteção de Constantino. Esse pioneirismo em escrever uma história da Igreja será reconhecido pelo próprio Eusébio já na introdução de sua obra: “Tengo para mí que es de todo punto necesario el que me ponga a trabajar este tema, pues de ningún escritor eclesiástico sé, hasta el presente, que se haya preocupado de este género literario” (HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, I 1, 5). Ele também deixa claro que sua intenção é de instruir aqueles que se interessarem pela história: “Espero, además, que se mostrará utilísimo para cuantos se afanan por adquirir sólida instrucción histórica” (HE, I 1, 5). Embora seja o primeiro a escrever uma história eclesiástica, Eusébio irá ser influenciado por escritores anteriores, que apesar de não escreverem uma história propriamente dita da Igreja, irão apresentar cronologias e exposições de fatos históricos, como Júlio Africano e Hipólito (MOMIGLIANO, 1993: 99).
Nos primeiros parágrafos do livro I da História Eclesiástica Eusébio apresentará um verdadeiro plano da obra, deixando bem claro suas motivações e objetivos ao escrever uma história da Igreja:
Es mi propósito consignar las sucesiones de los santos apóstoles, y los tiempos transcurridos desde nuestro Salvador hasta nosotros; el número y la magnitud de los hechos registrados por la historia eclesiástica, y el número de los que en ella sobresalieron en el gobierno y en la presidencia de las iglesias más ilustres, así como el número de los que en cada generación, de viva voz o por escrito, fueron embajadores de la Palabra de Dios; y también quiénes, y cuántos, y cuándo, sorbidos por el error y llevando hasta el extremo sus novelerías, se proclamaron públicamente a sí mismos introductores de una mal llamada ciencia y esquilmaron sin piedad, como lobos crueles, al rebaño de Cristo; y, además, incluso las desventuras que se abatieron sobre toda la nación judía enseguida que dieron remate a su conspiración contra nuestro Salvador (HE I 1, 1-2).
Podemos perceber, nesse plano de obra apresentado por Eusébio, sua preocupação em transmitir a sacralidade da história da Igreja através da sucessão de seus bispos, legítimos sucessores dos apóstolos. Nesse destaque dado por Eusébio a essa Diadokhé, expressão grega utilizada por ele, traduzida como “sucessão”, seu interesse é “preservar e transmitir os sucessores dos apóstolos e dos bispos, seus sucessores regulares, posto que a tradição apostólica é a garantia de autenticidade da doutrina. Encontra-se de chofre a instituição, a autoridade e a memória” (HARTOG, 2001: 266-267). 
Ainda é interessante notar que ele pretende expor a memória daqueles que ensinaram doutrinas contrárias ao da ortodoxia vigente na Igreja, para mostrar o triunfo dessa ortodoxia contra essas ditas heresias. Aqui encontramos uma afirmação de identidade através da oposição entre os escritores considerados ortodoxos em suas doutrinas por Eusébio e os escritores heréticos
Ainda dentro dessa formação de uma identidade cristã, necessária no momento em que escreve Eusébio, onde a Igreja conquistará sua liberdade com o Édito de Tolerância em 313, apresentará os fatos da história dos judeus, mostrando, com as catástrofes que se abateram sobre estes, a supremacia e predileção diante de Deus da Igreja Cristã, num claro discurso de aversão ao judaísmo. 

A História de Eusébio
No prólogo do livro V da História Eclesiástica Eusébio deixará claro que a história que faz possui uma grande diferença com a história clássica produzida pelos pagãos. Segundo ele, “Otros, al hacer las narraciones históricas, acaso no hayan transmitido por escrito más que victorias de guerras, trofeos contra enemigos, hazañas de generales y valentías de soldados manchados de sangre y de muertes innumerables por causa de los hijos, de la patria y demás bienes” (HE V prólogo, 3). Como podemos denotar, o que Eusébio não pretende é ser um “Tucídides Cristão”. Esse trecho também nos revela um pouco da visão de Eusébio sobre o gênero histórico da antiguidade. A originalidade dele se mostra, então, porque
Nuestra obra, en cambio, que describe el género de vida según Dios, grabará en estelas eternas las más pacíficas luchas por la misma paz del alma y el nombre de los que en  ellas se comportaron varonilmente, más por la verdad que por la tierra patria, y más por la religión que por seres queridos, y se proclamará públicamente, para eterna memoria, la resistencia de los atletas de la fe, su bravura, curtida en mil sufrimientos, los trofeos logrados contra los demonios, las victorias sobre los adversarios invisibles y, después de todo, sus coronas (HE V prólogo, 4).
Eusébio deixa claro, portanto, que a função da história eclesiástica é transmitir os fatos gloriosos da Igreja, em contraponto às guerras e fatos políticos da história clássica greco-romana. Como nos dirá François Hartog, a história desenvolvida por ele, “Diferentemente da outra história, a ordinária, a das nações antigas, não se trata senão de combates a favor ou contra a nova fé: as heresias, as perseguições, os mártires, os ditos e os feitos dos principais bispos e a vida das principais igrejas” (HARTOG, 2001: 267).
A história eclesiástica pensada por Eusébio está repleta, nas palavras de Christian Meier de uma “História providencial que se desenrola desde a criação do mundo, passando pela História judaica, indo em direção ao nascimento de Cristo, para desembocar na História do Império Romano” (KOSELLECK, 2013: 60). De fato, ele conscientemente irá construir a temporalidade de seu texto histórico baseado nas concepções cronológicas judaico-romanas, fazendo o que Meier chamará de uma sincronização entre História bíblica e História pagã. Isso se faz possível porque “o cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada” (ELIADE, 1992: 57).

Conclusão
Ao entender a História Eclesiástica de Eusébio como um marco fundador da escrita da história cristã, esse trabalho se insere numa pesquisa onde procuraremos identificar no discurso dele elementos de formação de um gênero histórico-eclesiástico e sua influência em textos posteriores; procuraremos também identificar as fontes utilizadas por ele na História Eclesiástica e o modo como irá articulá-las na construção da obra, e analisar a construção do texto histórico por Eusébio, integrando-o ao contexto histórico da Antiguidade Tardia, através do diálogo com autores que irão da história da historiografia e filosofia da história, além de trabalhos sobre a patrística, particularmente a patrística grega.
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Notas:

¹ Trabalho originalmente apresentado como comunicação oral no I Fórum de Ensino e Pesquisa EM História Da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – I FEPH UFRRJ, 2015.

² Orientadora: Profa. Dra. Renata Rozental Sancovsky. Bolsista de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos – PLURALITAS/CNPq e do Grupo de Estudos em Mitologia e Religião – GEMR/PLURALITAS. 

³ Pioneirismo, aliás, reconhecido pelo próprio Eusébio. Cf. História Eclesiástica I 1, 3.

Referências Bibliográficas:

Fonte:
EUSEBIO PANFILIO, Obispo de Cesarea. Historia Eclesiástica. Traducción, introducción y notas de Argimiro Velasco-Delgado. Madrid: BAC, 2008.

Bibliografia:
DUJOVNE, León. La filosofia de la Historia em la Antigüedade e em la Edad Media. Buenos Aires: Ediciones Galatea-Nueva Visión, 1958.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HARTOG, François (org.). A História de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
KOSELLECK, Reinhartet al. O conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 
LE GOFF, Jacques (org.). Homens e mulheres da Idade Média. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
LIEBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, v. 1, 2000.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: Edusc, 2004.
______. Ensayos de historiografia antigua y moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Antiguidade Tardia. São Paulo: Editora Ática, 1990.
SILVA, Eliton Almeida da. Identidade na Antiguidade Tardia: considerações sobre a perspectiva de Eusébio de Cesareia quanto à identidade dos cristãos no século IV d. C. Revista História e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.252-267, 2013.
SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, v. 2, 2002.

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