Nem tudo que queima é fogueira: O Malleus Maleficarum e sua jornada errante no cenário de caça às bruxas – sécs. XV e XVI.
Falar de inquisição é sempre falar de um tema que muito
aguça a curiosidade. De fato, esse é um dos temas mais debatidos e procurados,
tanto pelos que fazem da História seu estudo principal, quanto pelos curiosos e
interessados de maneira geral. O que também não se pode negar é que muito se
tem escrito, tanto no campo profissional quando no amadorismo, sobre o Tribunal
do Santo Ofício e a “caça às bruxas” em geral. E não se pode negar também os
tantos equívocos que não raro são divulgados com ares de verdade.
Aqui me permitirei, se assim também me permitir o paciente
leitor, a divagar um pouco sobre o tão famoso e falado Martelo das Feiticeiras
(em latim Malleus Maleficarum),
escrito por dois inquisidores no final o século XV, na região da atual
Alemanha. Como o bom leitor deve saber, se trata um perverso manual louvado e
utilizado pela Igreja Católica em sua ânsia em levar as bruxas (verdadeiras ou
não) ao suplício da fogueira através de bizarras investigações e métodos de
identificar as malvadas esposas de Satã. Certo? Errado. Não, não me repreenda
tão logo, caro leitor. Acompanhe-me antes nessa análise de fatos que talvez me
ajude a lhe mostrar a firmação que nego (ignorem o paradoxo).
O Malleus Malleficarum
foi escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois inquisidores
dominicanos. Em 5 (ou 9 em algumas cópias da bula) de dezembro 1484, através da
bula Summis desiderantes afectibus,
do papa Inocêncio VIII, ambos foram nomeados para atuar no combate à bruxaria
no norte da atual Alemanha, com amplos poderes. Para transmitir os resultados e
métodos de sua atuação, escreveram um completo manual sobre a caça às bruxas,
onde vão analisar desde os modos como agem as bruxas em seus rituais e
malefícios até o modo como julgá-las e se lhes aplicar a lei canônica. Um
verdadeiro martelo das hereges montadoras de vassouras.
Em 9 de maio de 1487, os autores apresentaram o Malleus Maleficarum à faculdade de
teologia da Universidade de Colônia, para ser aprovado pelos clérigos e ter sua
publicação autorizada, como se requeria na publicação de livros de teologia no
período. E, logicamente, o livro foi louvado e logo aprovado pelos padres da
Universidade, não é mesmo? Não caríssimos, pelo contrário. O clero da
universidade condenou o livro “por instigar atos antiéticos, ilegais e
contrários à doutrina católica.” Com certeza um banho de água fria nos dois
inquisidores, que talvez se achassem blindados pela bula papal.
Mesmo com a condenação e proibição da publicação do Malleus, Kramer forjou uma suposta
aprovação da obra e o mandou imprimir com essa falsa declaração de aprovação do
livro, o que que acabou dando a impressão de que publicação tinha respaldo
legal por parte da Igreja, o que não era verdade. O ano de 1487 é o mais
geralmente aceito e apontado como a data de publicação, embora existam
evidências de que outra edição possa ter sido produzida em 1485 ou 1486.
Bom, forjar assim um certificado aprovação e mandar imprimir
uma obra condenada por conter uma teologia e moral duvidosa só poderia contar
com complicações com a Igreja. E não deu outra. Três anos após a publicação da
obra, em 1490, Kramer foi processado pela inquisição, e o Malleus Maleficarum foi colocado na lista dos livros proibidos pela
Igreja Católica.
Apesar disso, entre 1487 e 1520 o livro contou com pelo
menos 13 publicações, e entre 1574 e 1669, com 16 reimpressões. Embora proibido
e rechaçado oficialmente pela Igreja, o nobre leitor não pode acusar esse que
vos escreve de pueril ingenuidade, sendo claro que o livro foi muito usado e
divulgado por muitos clérigos da mesma Igreja. Isso se faz porque a Igreja não
era, ao contrário do que vejo muitos pintando, talvez ingenuamente, a mão
invisível a controlar todas as instancias e momentos da vida de todo e qualquer
cidadão que estivesse sobres seu domínio espiritual e temporal. Muita coisa (e
põe muita coisa nisso!) escapava aos olhos do clero. Se hoje em dia, na era da
internet e das informações em um minuto é dificílimo ao Estado ter controle
sobre a pirataria, quanto mais difícil não seria controlar a circulação de um
livro no início da Idade Moderna. E lembremos: onde há repressão (como
claramente o havia naquele período), há transgressão. Ouso dizer que aquela não
viva sem esta. E vice-versa.
A publicação clandestina do Malleus Maleficarum encontrou crescimento ainda maior com a reforma
protestante, onde foi largamente, talvez até muito mais que na Igreja Católica,
utilizado por seus tribunais religiosos. Vale lembrar também que a criação do Malleus coincide com a descoberta da
imprensa por Gutemberg, no século XV, que tornou a divulgação literária
extremamente mais viável, de produção mais rápida e em maior escala de
impressão.
Só para não deixar de falar dos nossos autores, James
Sprenger virá a falecer logo em 1495. Desconheço se também foi investigado pela
inquisição. De fato, a autoria do Malleus é lhe atribuída por ter auxiliando
Kramer, que teria sido seu idealizador mais estritamente falando. Kramer
faleceu em 1505, na Boêmia.
Por fim, o leitor pode ver que a jornada do Malleus Maleficarum e de seus autores é
bem conturbada e diferente do que muitas vezes é divulgado. Basta dizer que na edição brasileira do
Malleus, publicada pela Edições BestBolso, em parte alguma das duas introduções
é ressaltada ou sequer citada a recusa da Igreja ao livro. Se isso não
bastasse, ainda traz ao fim o certificado de “aprovação” da Universidade de
Colônia, mas em momento algum é explicitado que o certificado é falso. Mas para
que, né? Detalhe insignificante...
Bibliografia:
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015.
ANKARLOO, Bengt; CLARK, Stuart (Editors). Witchcraft and Magic in Europe, volume 3: The Middle Ages. Pensylvania University Press, 2002.
GINZBURG, Carlo. História
noturna: decifrando o sabá. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
NOVINSKY, Anita. A
inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2007.
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