Nem tudo que queima é fogueira: O Malleus Maleficarum e sua jornada errante no cenário de caça às bruxas – sécs. XV e XVI.


Eduardo Silva
Aluno de graduação em História/UFRRJ
lattes.cnpq.br/2911677383103317





Falar de inquisição é sempre falar de um tema que muito aguça a curiosidade. De fato, esse é um dos temas mais debatidos e procurados, tanto pelos que fazem da História seu estudo principal, quanto pelos curiosos e interessados de maneira geral. O que também não se pode negar é que muito se tem escrito, tanto no campo profissional quando no amadorismo, sobre o Tribunal do Santo Ofício e a “caça às bruxas” em geral. E não se pode negar também os tantos equívocos que não raro são divulgados com ares de verdade.

Aqui me permitirei, se assim também me permitir o paciente leitor, a divagar um pouco sobre o tão famoso e falado Martelo das Feiticeiras (em latim Malleus Maleficarum), escrito por dois inquisidores no final o século XV, na região da atual Alemanha. Como o bom leitor deve saber, se trata um perverso manual louvado e utilizado pela Igreja Católica em sua ânsia em levar as bruxas (verdadeiras ou não) ao suplício da fogueira através de bizarras investigações e métodos de identificar as malvadas esposas de Satã. Certo? Errado. Não, não me repreenda tão logo, caro leitor. Acompanhe-me antes nessa análise de fatos que talvez me ajude a lhe mostrar a firmação que nego (ignorem o paradoxo).

O Malleus Malleficarum foi escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, dois inquisidores dominicanos. Em 5 (ou 9 em algumas cópias da bula) de dezembro 1484, através da bula Summis desiderantes afectibus, do papa Inocêncio VIII, ambos foram nomeados para atuar no combate à bruxaria no norte da atual Alemanha, com amplos poderes. Para transmitir os resultados e métodos de sua atuação, escreveram um completo manual sobre a caça às bruxas, onde vão analisar desde os modos como agem as bruxas em seus rituais e malefícios até o modo como julgá-las e se lhes aplicar a lei canônica. Um verdadeiro martelo das hereges montadoras de vassouras.

Em 9 de maio de 1487, os autores apresentaram o Malleus Maleficarum à faculdade de teologia da Universidade de Colônia, para ser aprovado pelos clérigos e ter sua publicação autorizada, como se requeria na publicação de livros de teologia no período. E, logicamente, o livro foi louvado e logo aprovado pelos padres da Universidade, não é mesmo? Não caríssimos, pelo contrário. O clero da universidade condenou o livro “por instigar atos antiéticos, ilegais e contrários à doutrina católica.” Com certeza um banho de água fria nos dois inquisidores, que talvez se achassem blindados pela bula papal.

Mesmo com a condenação e proibição da publicação do Malleus, Kramer forjou uma suposta aprovação da obra e o mandou imprimir com essa falsa declaração de aprovação do livro, o que que acabou dando a impressão de que publicação tinha respaldo legal por parte da Igreja, o que não era verdade. O ano de 1487 é o mais geralmente aceito e apontado como a data de publicação, embora existam evidências de que outra edição possa ter sido produzida em 1485 ou 1486.
Bom, forjar assim um certificado aprovação e mandar imprimir uma obra condenada por conter uma teologia e moral duvidosa só poderia contar com complicações com a Igreja. E não deu outra. Três anos após a publicação da obra, em 1490, Kramer foi processado pela inquisição, e o Malleus Maleficarum foi colocado na lista dos livros proibidos pela Igreja Católica.

Apesar disso, entre 1487 e 1520 o livro contou com pelo menos 13 publicações, e entre 1574 e 1669, com 16 reimpressões. Embora proibido e rechaçado oficialmente pela Igreja, o nobre leitor não pode acusar esse que vos escreve de pueril ingenuidade, sendo claro que o livro foi muito usado e divulgado por muitos clérigos da mesma Igreja. Isso se faz porque a Igreja não era, ao contrário do que vejo muitos pintando, talvez ingenuamente, a mão invisível a controlar todas as instancias e momentos da vida de todo e qualquer cidadão que estivesse sobres seu domínio espiritual e temporal. Muita coisa (e põe muita coisa nisso!) escapava aos olhos do clero. Se hoje em dia, na era da internet e das informações em um minuto é dificílimo ao Estado ter controle sobre a pirataria, quanto mais difícil não seria controlar a circulação de um livro no início da Idade Moderna. E lembremos: onde há repressão (como claramente o havia naquele período), há transgressão. Ouso dizer que aquela não viva sem esta. E vice-versa.

A publicação clandestina do Malleus Maleficarum encontrou crescimento ainda maior com a reforma protestante, onde foi largamente, talvez até muito mais que na Igreja Católica, utilizado por seus tribunais religiosos. Vale lembrar também que a criação do Malleus coincide com a descoberta da imprensa por Gutemberg, no século XV, que tornou a divulgação literária extremamente mais viável, de produção mais rápida e em maior escala de impressão.

Só para não deixar de falar dos nossos autores, James Sprenger virá a falecer logo em 1495. Desconheço se também foi investigado pela inquisição. De fato, a autoria do Malleus é lhe atribuída por ter auxiliando Kramer, que teria sido seu idealizador mais estritamente falando. Kramer faleceu em 1505, na Boêmia.

Por fim, o leitor pode ver que a jornada do Malleus Maleficarum e de seus autores é bem conturbada e diferente do que muitas vezes é divulgado.  Basta dizer que na edição brasileira do Malleus, publicada pela Edições BestBolso, em parte alguma das duas introduções é ressaltada ou sequer citada a recusa da Igreja ao livro. Se isso não bastasse, ainda traz ao fim o certificado de “aprovação” da Universidade de Colônia, mas em momento algum é explicitado que o certificado é falso. Mas para que, né? Detalhe insignificante...

Bibliografia:
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015. 
ANKARLOO, Bengt; CLARK, Stuart (Editors). Witchcraft and Magic in Europe, volume 3: The Middle Ages. Pensylvania University Press, 2002.
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2007. 

Share:

0 comentários